domingo, 31 de maio de 2009

Decidida determinação

Voltando agora para aqueles que desejam seguir
pelo caminho de Deus e não parar até o fim...
Digo que muito importa, sobretudo,
ter uma grande e muito decidida determinação
de não parar enquanto não alcançar a meta,
surja o que surgir, aconteça o que acontecer,
sofra-se o que se sofrer, murmure quem murmurar,
mesmo que não se tenham forças para prosseguir,
mesmo que se morra no caminho
ou não se suportem os padecimentos que nele há,
ainda que o mundo venha abaixo.

Santa Teresa de Ávila

quinta-feira, 28 de maio de 2009

"O amor ignora os abismos do tempo."

Rubem Alves

Todos temos os nossos momentos de fraqueza ainda que nos vale é sermos capazes de chorar, o choro muitaz vezes é uma salvação, há ocasiões em que morreríamos se não chorássemos.

Há esperanças que é loucura ter, Pois eu digo-te que se não fossem essas já eu teria desistido da vida.

O amor, que dizem ser cego, também tem a sua palavra a dizer.


José Saramago

domingo, 24 de maio de 2009

Maísa: infância e filosofia

24/05/2009

A Rede Globo está em guerra aberta contra Sílvio Santos. A camisa de Ronaldinho, a favor do último, deixa os proprietários da Globo malucos de ódio.

Ao mesmo tempo, uma avalanche de psicólogas (algumas da USP!) novamente se agrupam às juízas para, como se diz, protegerem a infância. Maísa perde o emprego.

Venho escrevendo sobre a infância desde o início dos anos noventa. Tenho mostrado que a idéia de infância como um “fato da natureza” é tão invenção nossa, de nossa cultura, quanto a idéia de que a ela é “produto histórico”. Natureza ou história não ajudam em nada no caso. O problema é que a tal da noção de infância que, agora, nas mãos dos intelectuais da ordem jurídica e dos intelectuais da ordem mental, já virou conceito, é de menos ajuda do que parecia até bem pouco tempo.

Há pouco tempo, quase todos nós, mais ou menos humanistas, admitíamos que Rousseau tinha lá sua razão ao ter inventado a infância como um fato natural, e que Philipe Ariés tinha tido uma boa idéia ao denunciar que a infância como fato natural era, na verdade, fato histórico. Tudo isso parecia fazer sentido e nos ajudava a entender as crianças. Foi um tempo em que lutávamos todos pela criação de um aparato institucional em favor da proteção da criança. O erro foi rotularmos isso de “proteção à infância”. Pois, ao falarmos da infância – o conceito – nos esquecemos de olhar o que tínhamos de olhar, que é a criança.

Agora, chegou a hora de ou repensamos isso ou, então, vamos começar a criar o terrorismo que se está criando com o caso Maísa e, de certo modo, contra a própria Maísa.

Não há nenhuma agressão contra Maísa da parte de Sílvio Santos. Nada que ocorreu no programa foi obra de maldade de Sílvio ou do SBT ou de descuido. A menina lá está com a mãe. Já esteve antes, durante bom tempo, no Raul Gil. A menina gosta de fazer o programa e faz bem – pode-se inferir isso pelo fato dela não ser novata. Ela já é veterana. E ela não tem se dado pior na escola por tais atividades. Agora, se ela vai ficar “traumatizada” no futuro por ter participado do programa do Silvio, isso vai depender do futuro do Silvio e dela mesma.

Caso um dia Sílvio se torne, para a história, o que o Collor se tornou, ninguém vai querer dizer que participou de programa dele. Maísa tentará apagar esse seu passado negro. Caso Maísa não seja instruída pelos pais e pelo próprio Silvio e sua equipe, no sentido de que ela pode não ser atriz no futuro, que pode terminar como o Pedrinho do Sítio do Pica Pau Amarelo (que a Rede Globo deixou na mão), aí sim as coisas irão seguir um caminho ruim. Portanto, é quanto ao fato de ver se Maísa agüenta ou não o mundo da competição, que todos deveriam estar preocupados. Mas, a preocupação com o comportamento de Maísa ou a preocupação com possíveis abusos contra ela no programa, isso não conta – não é algo que se deva levar a sério. Aliás, uma preocupação desse tipo nem deveria estar ocorrendo. Pois, quando se coloca isso em questão, o que está contando é antes o conceito de infância (que temos na cabeça) do que a criança Maísa.

As psicólogas que condenam a aparição de Maísa no programa não escrevem coisa com coisa. A fraseologia de uma boa parte delas é a do esquerdismo fora de propósito: o mundo capitalista do programa Sílvio Santos é o mundo do lucro e do demônio. É a ladainha de sempre, dos pouco inteligentes, que aprenderam duas palavras – neoliberalismo e globalização – e acham que podem transformar letra de música (“capitalismo selvagem”) em teoria social e psicológica. As psicólogas que escreveram escandalizadas contra o SBT estão preocupadas com o fato de “Maísa” “não ter limites”. E a questão da “barbárie” contra Maísa também conta, mas em segundo plano. Ora, se Maísa fosse comportadinha, ela não seria o personagem que se apresenta na TV. E ela sabe que ela está fazendo um personagem. Ela é criança, mas não é burra.

Agora, no caso da juíza que proibiu Maísa de aparecer no programa, o ato é meramente formal. A juíza aplicou a lei. Mas não quis ter o bom senso de interpretar e aplicar a lei para o caso específico. Novamente: contou o conceito de infância, não a criança. Ela não percebeu que Maísa, daqui para diante, irá sempre dizer: “a lei no Brasil é errada, ela pune quem quer trabalhar, quem quer sobressair”. Isso Maísa dirá no futuro, mais provavelmente. Agora, no momento, o que Maísa deve estar pensando é o seguinte: “fui culpada da minha desgraça e da falha do SBT e do Sílvio, fracassei, eu não devia ter chorado no programa”.

Nos dois casos, a juíza terá antes prejudicado Maísa do que colaborado com a sua proteção.

Tudo isso não é culpa da filosofia. Mas, se a filosofia quiser ajudar Maísa e também a nós, ela tem de parar de cultivar a noção de infância como conceito. Pois, como conceito, muita coisa que é criança está ficando de fora da idéia de infância, e muita coisa que não precisa de proteção está sendo protegida demais – inclusive em um sentido errado da palavra “proteção”.

Maísa é criança? Claro! Mas Maísa tem de ter a infância preconizada pela lei? A infância se tornou, agora, algo rígido e quem não couber nela, a pretexto de ser protegido, irá ser punido. Basta ver o que a lei atual faz com o trabalho do menor, e então isso que digo aqui ficará bem nítido.

Escrevi em 1996 que se Pinóquio estivesse em nossa sociedade ele não teria podido ir para a escola.[1] Não por não ter livros. Gepeto vendeu seu casado e comprou os livros. Pinóquio não iria para a escola por não ser “criança de verdade”. Um boneco de pau não passa no crivo do nosso conceito de infância (obviamente), e assim, o Pinóquio não teria direito à educação. Aliás, nem mesmo com a nova noção de “inclusão”! Mas, na sociedade de Gepeto, a escola não aceitava somente “crianças de verdade”. Sem o conceito de infância, a escola aceitava todos. Por isso, Pinóquio, após algumas peripécias, conseguiu freqüentar a escola. Aliás, tornou-se “menino de verdade” não só pela Fada, mas por ter sido socializado na escola. Na verdade, a escola, sem a Fada, poderia ter feito tudo que foi feito.

Maísa não é “criança de verdade” no programa. Então, todos ficam revoltados. Querem enquadrá-la no conceito de infância que temos. O mesmo que não enquadraria Pinóquio. A filosofia precisa parar de ser única e exclusivamente a construtora de conceitos para ser, também, a varredora do lixo das noções não úteis. A noção de infância ou o conceito de infância que estamos usando já deveria ter sido aposentado. Ele é novo, eu sei. Mas caducou jovem. Está só fazendo estragos nas mãos de toscos. E como os toscos sempre terão alguma voz, o melhor é tirar de circulação os conceitos que eles não sabem utilizar.

Não temos que criar outro conceito de infância. Temos apenas que tratar pragmaticamente, com inteligência, cada caso. No caso que temos na mão, o principal é ponderar o que realmente pode prejudicar Maísa, e não o que não pode e não vai prejudicá-la. Antes de tudo, precisamos não imputar os nossos traumas de adultos a uma idealização de criança que queremos ver em Maísa. Protegê-la de verdade, é outra coisa. É ver até que ponto todos nós não vamos esquecê-la como nos esquecemos do Pedrinho, o do Sítio, o da Globo.

Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo

sábado, 23 de maio de 2009

Perdas & perdas

NAS PERDAS DO BEM há mais e menos; há bens mais perdidos, e bens menos perdidos. O bem perdido menos perdido é aquele que depois de perdido se pode recuperar: o bem mais perdido e totalmente perdido, é aquele que perdido uma vez, não pode recuperar-se.

Perde um homem a Deus, e perde o tempo: qual é maior perda? Em razão de bem é Deus, em razão de perdido é o tempo; porque Deus perdido pode recuperar-se; o tempo perdido não se pode recuperar.

Padre Antônio Vieira, em Discurso Primeiro, Sermões.

Nossa luta

Nossa maior luta é contra nós mesmos...pense nisso!

Liberdade

Vale muito a pena ver este vídeo sobre a liberdade...

O que é ideologia – um verbete

Vale a pena ler...excelente texto

1. Características gerais

“Qual a ideologia que está por trás disso?” – eis aí uma pergunta estranha, mas que várias pessoas formulam, descuidadamente. Não há ideologia “por trás”. Caso exista algo “por trás” de um texto ou de um vídeo ou de uma peça de teatro ou de uma bula de remédio ou de uma legislação, pode acreditar, você não está diante da ideologia. Por uma razão simples: ideologia é algo que não vem “por trás”, ideologia é o que vem em primeiro plano, é o que está “na frente”.

Quando notamos movimentos sociais e de grupos, institucionais ou não, aprendemos rapidamente isso: a ideologia e a propaganda são parentes não distantes, e a semelhança familiar é justamente esta: ambas querem aparecer.

Um conjunto de caravelas espanholas ataca as caravelas inglesas. Eis aí o tempo de Elizabeth. O que carregam os espanhóis junto de suas velas, ou em bandeiras ou como figura estampada nas próprias velas? O Cristo na Cruz. É o desenho do Cristo o que está “por trás”? De modo algum, a gravura, que é sem dúvida, no caso, o símbolo ideológico, vai à frente. Não se esconde. Mostra-se. Tem de se mostrar.

Vejamos agora um documento educacional, uma peça de legislação. Vamos às reformas educacionais de Getúlio Vargas. Ali, claramente, o ensino médio aparece como voltado para a criação de “elites condutoras” – esta é a frase usada à risca, na letra da lei. Ora, a ideologia conservadora, que diz que o povo precisa ser conduzido por grupos da “elite”, está escondida? Está “por trás”? De modo algum. Está explícita e bem acomodada nas primeiras linhas. Está na frente.

A primeira característica de um conjunto de idéias que se pode chamar de ideologia é a de vir antes que qualquer outra coisa. Ela pertence ao que se quer mostrar e, de preferência, em primeiro plano. Ora, mas há outras duas características da ideologia.

A segunda característica é a busca de universalidade a qualquer preço. Um conjunto de idéias que é bem particular, que não tem grande força lógica para se tornar universal e, no entanto, busca se tornar universal e quer ser uma verdade independente de todos e uma verdade para todos, já está funcionando como ideologia. É próprio de um conjunto de idéias que se quer transformar em ideologia procurar se colocar de modo abstrato, para ganhar universalidade.

“O amor é a única lei” é uma idéia cristã, contra a idéia pagã da “lei do olho por olho e dente por dente”. Todavia, quando já ninguém sabe o que é que se quer dizer por amor, dado sua transformação em palavra abstrata, então a frase pode ser endossada por todos. Todo mundo diz que a coisa mais importante do mundo é “ter amor”. Assim, o próprio cristianismo, se está ligado a isso, se comporta como ideologia.

A terceira característica da ideologia é que ela quer antes mostrar a verdade “que se tem de seguir” do que um conjunto de enunciados que, possa levar à reflexão a respeito de outros conjuntos de enunciados e assim por diante. Ela, a ideologia, aceita pouco aquilo que Robert Brandom, louvado por Rorty, chamou de “o jogo de dar e pedir razões”. Nesse sentido, é próprio da ideologia o engodo, a ilusão ou o erro.

Nesse caso, não falamos de erro psicológico (da percepção ou do raciocínio). Trata-se de engano, certamente, mas como uma feição bem especial, a saber, nem sempre a ilusão ideológica se desfaz uma vez que seu mecanismo de engodo é revelado. Trata-se aqui do contrário do erro percetivo ou de um raciocínio equivocado, que pode ser corrigido, e geralmente o é, quando vemos que em que lugar a frase endossada está dando problemas O engodo ideológico permanece, mesmo quando denunciado. A realidade que vemos ideologicamente não muda, mesmo que o que tomamos por realidade esteja, então, denunciado como produto ideológico.

Por exemplo, se alguém olha para a realidade de negros e brancos, em um país fortemente racista, em que há discriminação contra os negros, e vê os negros como inferiores, o fato de se denunciar que isso não é nada senão uma visão ideológica, não extirpa dos “olhos” de quem assim vê tal realidade. Ele não vê algo novo. Ele não pensa de modo novo. A denúncia não altera a compreensão (imediata) como alteraria a compreensão de alguém que é denunciado ter cometido um erro lógico, como o de manter duas sentenças contraditórias ao mesmo tempo e no mesmo lugar. A denúncia não altera a compreensão (imediata) como mudaria a compreensão de alguém que vê um cachorro e, ao chegar mais perto, percebe que errou, que o que estava ali era um gato.

2. Filosofia e senso comum

Não raro, a filosofia também se põe como um conjunto de idéias, uma doutrina e, nesse sentido, se parece com a ideologia. E muitos confundem uma com a outra quando ambas assim se apresentam, como doutrinas. Todavia, a filosofia, isto é, a filosofia que não se corrompeu em ideologia, não se apresenta “na frente”. Ela é o que vem “por trás”. Não que esteja escondida. Ela vem por trás por uma razão simples, a filosofia é uma atividade racional, e só podemos usar da razão de modo explicativo e como fornecedora de boas justificações, quando os fatos já se passaram e quando o discurso histórico, ao menos em parte, já se fez.

“A Coruja de Minerva levanta vôo ao entardecer”, escreveu Hegel. Exatamente: só depois que há a história, então, ao final do dia, a razão passeia sobre tudo e fornece seu veredicto, tornando tudo que é insano, louco e sem sentido, em algo com algum sentido – o que se pode explicar aparece, e o que se pode compreender ganha vida. Esse trabalho da razão, o de dar sentido, não é senão o trabalho da filosofia. A filosofia vem depois, vem tardiamente, vem por trás, não tem como vir pela frente.

A coruja é ave de rapina, precisa enxergar todo o terreno à noite, caso queira conseguir alimento. Deve ver longe e de modo bem amplo, e não pode errar a rasante e não pegar sua presa. Nada tem a ver com as outras aves pequenas. O pardal acorda cedo e sai para revirar o esterco. Come bichinhos do esterco, mas quando perguntado por outros animais sobre o que é seu alimento cotidiano, vive dizendo que são bons pedaços de pão da mesa dos humanos. A coruja é a filosofia, o pardal, a ideologia.

O senso comum mais ou menos cru toma a filosofia e a ideologia como doutrinas. E há verdade nisso. São doutrinas. Mas não de modo absoluto. O senso comum não é analítico e, então, não fazendo o trabalho de distinguir o joio do trigo (alguns gostariam de dizer, crítico), engole indistinções que não se deveria engolir de modo algum. Então, não vê que se em algum momento a filosofia e a ideologia quase se igualam, ao serem doutrinas, ainda assim elas não podem ser tomadas como a mesma coisa. Pois há a doutrina da coruja e há a doutrina do pardal.

O senso comum não acredita que é necessário, a todo o momento, fazer distinções. Ele não aprendeu a lição dos filósofos medievais, que diziam que quando encontramos uma contradição, o que temos de conseguir esboçar é uma distinção. Sendo assim, ele toma ideologia e filosofia como doutrinas e não vê as características da primeira como bem distintas da segunda. Por agir assim, sem grandes preocupações com a distinção, sem achar que contradição é algo que não pode ser engolido, ele é mesmo o senso comum, o pensamento que tem dificuldade em se engajar na filosofia. Não raro, ele está envolto na ideologia e imagina estar fazendo filosofia.

Encontramos boa parte dos professores, jornalistas, médicos etc. totalmente imersos em ideologias. Eles acreditam que só os não escolarizados vivem sob o domínio do senso comum, e que eles próprios funcionam segundo o aparato dado pelo pensamento crítico, livres da ideologia. Todavia, talvez isso que dizem já seja, então, uma ideologia. Afinal, é o que vem na frente – é a primeira coisa que dizem, quando querem se distinguir dos outros. Caso seja assim, então imaginam estarem endossando, de modo esperto, filosofias. Podem não estar. E nesse caso específico, talvez não estejam mesmo. Por não se preocuparem em fazer distinções, e então ver em que poderiam ser ou não diferentes dos não muito escolarizados (“o povo”), eles próprios podem estar apenas no campo do senso comum.

Aliás, diga-se de passagem, esse tipo de intelectual acaba mesmo se envolvendo em uma ideologia específica, que é a que endossa a idéia de que o senso comum é o “pensamento ingênuo”, e que o “homem do povo” ou “o povão” é sempre enganado, ludibriado exatamente por se manter na ingenuidade.

É claro que a proteção contra a ideologia é o uso da razão. Todavia, temos de nos lembrar que o uso da razão, a racionalização de tudo, pode também ser ideológica.

Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Privatizar-se ou autonomizar-se?

"Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar.
É da empresa privada o seu passo em frente,
seu pão e seu salário. E agora não contente querem
privatizar o conhecimento, a sabedoria,
o pensamento, que só à humanidade pertence."
( Brecht)

Viver é a obra de arte mais bela, não se pode delegar o viver, e se o faz, despersonaliza-se, perde-se. Neste mundo capitalista no qual estamos inseridos, somos acometidos dia após dia por informações, dentre elas, as privatizações de empresas, ou seja, à venda de empresas estatais para grupos particulares.Interessante é perceber que estas privatizações não acontecem somente no âmbito político, mas sim humano, e isso é trágico.Sobre isso é que iremos refletir.

O homem sofre a influência do meio, isto é inegável, estas influências podem ser de ordem : social, cultural, política , religiosa, dentre outras. O perigo destas influências é a de o homem não conseguir mais se perceber como sujeito, e sim como um elemento de um conglomerado. As sociedades tendem a produzir sujeitos em massa, o processo de alienação e manipulação são constantes, pois são estes mesmos manipuláveis que legitimam interesses político-capitalistas. O sistema cria a cada momento mecanismos para que o homem não tome consciência de si. Os que querem se perpetuar em processos exploratórios, lutam pela não emancipação do sujeito, não permitem que ele inicie um processo de autonomia e hominização, pois os mesmos demoliriam seus processos de escravização .


Mas o que fazer perante esta realidade? O que fazer para não ser vítima deste processo desumano?Como evitar a privatização de si mesmo?Acredito que a filosofia como reflexão sistemática, rigorosa e orgânica, pode nos ajudar a perceber estas cadeias e ao mesmo tempo nos libertar delas, ou pelo menos de algumas delas.


Platão no capítulo VII da República, sua obra de maior destaque, nos fala de homens que estão presos na caverna, e que só vêem imagens sobre a realidade e não como ela é de fato. O processo para se libertar da caverna é doloroso. Engendrar uma nova vida fora da caverna significa mudar posturas, hábitos já cristalizados no ser, mas é possível a transmutação. Mais do que isso, o libertado passa agora a ter uma missão: voltar para a caverna e mostrar àqueles que ali estão, a existência de um outro plano epistemológico , uma nova configuração existencial, mesmo sabendo que poderá até ser morto por aqueles que não o compreenderem, o processo de libertação precisa iniciar-se.


Eis o grande desafio que está diante de nós: realizarmos uma metamorfose epistemológica. Despojar-se com coragem de pensamentos que já não fazem mais sentido, e assim, lutar por uma existência que possua um verdadeiro significado para nós e para aqueles que coexistem conosco.


A revolução começa em nós. Como diz Dalai-Lama: “seja a mudança que você quer ver no mundo”. Deixo aqui algumas perguntas oriundas da reflexão do belíssimo excerto de Bertold Brecht: Queremos mesmo delegar a outro o direito de padronizar a forma com a qual devemos amar? Vamos pensar aquilo que já programaram para que pensássemos, ou vamos pensar por conta própria? Continuaremos nos colocando como vítimas de um sistema que nos despersonaliza, ou lutaremos por nossa autonomia existencial? A resposta final é sua!Só não esqueça: não escolher é escolher.


Diego Vainer @2009

domingo, 10 de maio de 2009

Pingado

Eu tomo café frio. Acho que deixo o café esfriar de propósito. Pelo esforço de tomá-lo. Há uma cota de sacrifício em cada gesto irrelevante.

Pego o café antes da cafeteira terminar de cuspir água. Queimo as mãos nas bordas, o caule da porcelana está boiando na fumaça. Momento perfeito para empunhar a xícara e degustar o charme do gole soprado. Ao invés disso, vou fazer novas tarefas. E o primeiro sorvo vem morno. Sou ansioso para me adiar.

Não adotei o pingado, lamento minha deserção. É delirante o dom de misturar certinho o volume, definir o que vai por cima. Uma autoridade maior do que enumerar as colherinhas do açúcar.

O amor não é expresso, é café-com-leite. Meio a meio, pouco a meio. Alguns preferem o leite; outros, o café. Por isso, combinam os dois.

Não sei se me faço entender: eu gostaria mais do café se viesse acompanhado do leite que não gosto.

Ninguém ama por inteiro. Eu amo e sou amado por fragmentos. No início da paixão, mostramos a região predileta: os dons e os dotes. Nossa parte benigna. Fácil decorar e pôr em prática.

É mais simples falar eu te amo quando não se ama. Quando vou falar eu te amo amando, o som não é natural. A boca pesa, a mão lateja, acredita-se em toda vogal. Nossa vida vai junto com os lábios de inverno.

Entendo agora: uma verdade que não se cansa é mentira. Portanto, amo de verdade e amo de mentira, para não deixar nada sem amar.

Não amo por inteiro. Amo por fases. Por dias. Por horas. Há incomodações, ódios e resmungos nos intervalos. Nivelar o amor é aniquilá-lo. É não admitir que a mulher não é o que espero, nem o que ela espera. E passar a desconfiar que não amo por aquilo que não preciso mesmo amar.

Procuro no amor a cegueira da paixão e os olhos já estão abertos nos dedos. Amar é suportar também não amar quem mais se ama. Lidar com o que nos irrita e não explodir. Dar a trégua para a paciência virar confiança. Não se sentir perseguido na hora da crítica. Não cortar a fala pelo passado. Não ameaçar com o fim, não interromper com chantagens, não sobrepor dissidências com suspeitas. Permitir que o rio mergulhe seus pés em nosso corpo.

O que julgava ser uma virtude - minha disposição em ajudar - pode ser compreendida como arrogância. Como se fosse cobrar um favor mais adiante. Ajuda só é ajuda no instante em que ela é esquecida. Tenho que ser suficientemente discreto para não voltar ao assunto. Nunca mais.

Meus avós maternos tomavam café-com-leite. Tão diferentes ao dormir, tão iguais ao acordar. O avô ainda separava abacates de seu quintal para a vitamina da tarde. Explicava, orgulhoso com o sotaque de cozinha: "o abacate é uma das raras frutas que amadurecem fora do pé".

Depende de uma semana longe da árvore. Como o amor. Inclusive quando não se ama.

Fabrício Carpinejar
arte: Paul Klee
“Durar? É estar no tempo, mas na continuidade do tempo. É ter um passado, que cresce. É ter cada vez menos futuro. É levar a peito o presente, em vez de ser levado por ele como uma criança. É levar a peito a própria morte. É amadurecer, caso se consiga. É envelhecer, pois é preciso. É continuar vivendo, lutando, agindo, amando. E superar a fadiga, o tédio, o desgosto, o pavor, o horror. E de quanta coragem precisamos apesar de tudo! Banalidade de tudo, exceto do pior. Fastio de tudo, exceto do melhor. Isso não impede a felicidade, aquela de que continuamos capazes, ou de nos tornarmos capazes…”

André Comte-Sponville, em A vida humana.