Conto
Kahlil Gibran
Um velho sacerdote disse:- Fale-nos da Religião.
E o profeta respondeu: - Falei de outra coisa hoje?
Não é a Religião todas as nossas ações e reflexões?
E tudo o que não é ação nem reflexão, mas um espanto e uma surpresa sempre brotando na alma, mesmo quando as mãos talham a pedra ou manejam o tear? Quem pode separar sua fé de suas ações, ou sua crença de seus afazeres?Quem pode desdobrar as próprias horas perante si, dizendo: “Esta é para Deus e esta é para mim; esta para minha alma e esta para meu corpo?”
Todas as suas horas são asas que adejam no espaço,passando de um eu a outro... >
E aquele para quem a adoração não é uma janela a abrir, mas também a fechar, não visitou ainda o santuário de sua alma, cujas janelas permanecem abertas de aurora a aurora.
Sua vida cotidiana é seu templo e sua Religião.
Todas as vezes que penetrar nele, leve consigo todo o seu ser. Leve o arado, a forja, o macete e a lira, as coisas que modelou por necessidade ou para seu prazer... E, se quer conhecer a Deus, não procure transformar-se em decifrador de enigmas. Olhe antes à sua e irá encontrá-lo brincando com seus filhos. Erga os olhos para o espaço e irá vê-lo caminhando nas nuvens, estendendo os braços no relâmpago e descendo na chuva. Estará sorrindo nas flores, levantando-se e agitando as mãos nas árvores.
João Cabral de Melo Neto
Auto do Frade
Acordo fora de mim
Como há tempos não fazia.
Acordo claro, de todo,
acordo com toda a vida,
com todos os cinco sentidos
e sobretudo com a vista
que dentro dessa prisão
para mim não existia.
Acordo fora de mim:
Como fora nada eu via,
Ficava dentro de mim
Como vida apodrecida.
Acordar não é de dentro,
Acordar é ter saída.
Acordar e recordar-se
Ao que em nosso redor gira.
...
Essas coisas ao redor
Sim me acordam para a vida,
Embora somente um fio
Me reste de vida e dia.
Essas coisas me situam
E também me dão saída;
Ao vê-las me vejo nelas,
Me completam, convividas...
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